Em 1964, a ditadura militar criou um dos seus principais órgãos de espionagem, o Serviço Nacional de Informações (SNI). Responsável pela perseguição e monitoramento de adversários do governo dentro e fora do regime, o SNI produzia dossiês, informações e fichas individuais sobre adversários políticos do regime.
Passados mais de 30 anos do início do processo de redemocratização, o país volta a viver o “pesadelo” que o órgão representava: o uso do Estado para vigilância ou investigação de opositores políticos do Planalto.
A análise é do antropólogo Luiz Eduardo Soares, um dos alvos do dossiê de monitoramento sigiloso produzido pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública de um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança, identificados como “movimento antifascista”, e professores universitários, por serem críticos do governo Bolsonaro.
“Bolsonaro sempre teve o sonho de recriar o SNI e o sonho de Bolsonaro está se convertendo no nosso pesadelo, no pesadelo da sociedade brasileira, porque isso está se concretizando. Agora nós temos a renovação com a restauração do espectro mais abrangente que era típico da ditadura”, afirma ele sobre o dossiê, revelado pelo portal UOL e elaborado pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do órgão.
Nesta sexta-feira, o ministro da Justiça, André Mendonça, será ouvido sobre o relatório sigiloso elaborado pela pasta com dados de quase 600 servidores públicos ligados a movimentos antifascistas e opositores do governo Bolsonaro na Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência da Câmara dos Deputados.
Soares, que foi secretário nacional de Segurança Pública durante o início do governo Lula da Silva (PT) e é autor de vários livros sobre o tema, estava enquadrado no subtítulo do relatório denominado “formadores de opinião”, no qual são citados ele, o especialista em direitos humanos Paulo Sérgio Pinheiro, o secretário estadual do Pará Ricardo Balestreri e o acadêmico da Universidade Federal da Bahia, Alex Agra Ramos.
Para Soares, o “procedimento ilegal e inconstitucional” se trata de mais um passo de Bolsonaro de acuar os militantes os que defendem a democracia, além de ser uma auto declaração do fascismo do governo.
“Na medida que esses engenheiros do caos, arautos do autoritarismo definem movimentos, militantes e intelectuais antifascistas como um problema, isso parece sugerir que eles próprios se põe no alvo das críticas e da repulsa do antifascismo. Portanto se identificam eles mesmos com o fascismo, o que é uma espécie de declaração enviesada e paradoxal de culpa. Como é possível tornar o antifascismo como uma ameaça? Nossa Constituição é antifascista, a população brasileira, os segmentos majoritários que se afirmam pela democracia são evidentemente antifascismo”, pontua o especialista.
Entre os monitorados, Alex Agra Ramos vai na mesma linha do antropólogo e pontua que é uma tentativa “desesperada do governo de criminalizar os policiais antifascistas”. Embora não tenha sido um secretário de segurança ou um professor universitário, ele também tem uma pesquisa acadêmica na área de segurança pública e contribui com o coletivo de Policiais Antifascismo, um dos principais alvos do dossiê.
“Eu me surpreendi inicialmente não pela existência do monitoramento em si, mas me surpreendi de certa forma até positiva por ver que se esse monitoramento está acontecendo é porque o coletivo de policiais está diante do governo produzindo algum tipo de incomodo de natureza política”, relata Ramos.
Ele relembra que estava com Soares e Balestreri em uma mesma mesa do Congresso dos Policiais Antifascistas em 2018. De acordo com a reportagem, os nomes dos agentes da segurança pública estaduais e federais foram tirados de dois manifestos antifascistas e em defesa da democracia de 2016 e 2020.
Mensagem
Na avaliação de Soares a tentativa de ameaça à democracia expressa no do dossiê de monitoramento dos opositores por meio do cerceamento da livre troca de ideias e opiniões, se dá por meio de uma “tríplice mensagem” para ruas e redes, para as instituições e opinião pública.
“Primeiro lugar uma mensagem de núcleos do governo aos seus apoiadores, ativistas, aqueles que tem saído às ruas defendendo bandeiras antidemocráticas. Muitas vezes assumidamente fascistas, o recado que se passa tacitamente é de que ‘estamos aqui no front interno e vocês sigam nas ruas e redes’.”, aponta o antropólogo.
Nesse sentido também chega para a sociedade como um todo a intimidação de quem ousa criticar o governo, ou quem se opõe ao fascismo, sofrerá consequências sem precedentes, com uma investigação clandestina à margem das leis e da Justiça.
E uma terceira mensagem para as instituições daqueles que são alvo do dossiê. “Na medida que isso significa também uma autorização tácita para que sejam perseguidos. Quase que uma convocação para que estas instituições excluam, persigam e atentem, vigiem estas pessoas que são marcadas”, coloca Soares.
Perseguição
Não à toa, o antropólogo alerta que a tortura e os porões da ditadura, que provocaram a morte de milhões de opositores do regime, eram “irmãos siameses” do Serviço Nacional de Inteligência (SNI).
“Não há um sem o outro. Se nós estamos agora diante de uma ameaça de recriação do SNI, nós estamos num grau de ameaças muito mais graves que pode se transformar numa realidade prática.”
Segundo a reportagem, o levantamento foi repassado a órgãos políticos e de segurança do país, como a Polícia Rodoviária Federal, a Casa Civil da Presidência da República, Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a Força Nacional e três “centros de inteligência” vinculados à Seopi no Sul, Norte e Nordeste do país.
Os centros funcionam como pontos de reunião e intercâmbio de informações entre o Ministério da Justiça e policiais civis e militares que são recrutados pelo ministério. Ainda não se sabe se a consequência da disseminação destas informações.
Ramos relembra que, durante a ditadura militar, cerca de 5 mil militares foram postos assassinados, postos na reserva, exilados e presos e reitera que o levantamento pode ser uma ameaça física aos servidores.
“De certa forma é uma maneira do governo também, na minha visão, de dar um suporte aos comandos gerais das policias do governo federal dizer o seguinte para as instituições ‘olha estamos dando um suporte a vocês, qualquer punição que vier em torno desses policiais tem legitimidade do ponto de vista do governo federal’”, analisa o cientista político.
Repercussão
Tanto Luiz Eduardo Soares como Alex Agra Ramos vão recorrer à Justiça. O antropólogo se posicionou individualmente e o cientista político está com a ação coletiva junto ao grupo de Policiais Antifascistas.
A ousadia do Ministério da Justiça e do governo federal gerou reações amplas em toda a sociedade civil dentro e fora do país. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA criticou o monitoramento: “Dossiê não é legitimo, nem necessário em uma sociedade democrática”.
Em uma nota conjunta, Associação Brasileira de ONGs, Associação Juízes pela Democracia (ABJD), Artigo 19, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conectas Direitos Humanos, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Instituto Pólis, Instituto Sou da Paz, Instituto Vladimir Herzog e outras organizações também repudiaram o relatório.
Quando o caso veio à tona, no dia 24 de julho, o ministério não negou a existência do dossiê. Em nota, disse que a atividade da Seopi integra o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e que as “ações especializadas” desenvolvidas pelo órgão tem o objetivo de “subsidiar decisões que visem ações de prevenção, neutralização e repressão de atos criminosos de qualquer natureza que atentem contra a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio”.
Não detalhou, contudo, quais são os supostos atos criminosos cometidos por esse grupo.
Pressionado por partidos de oposição, o Supremo Tribunal Federal (STF) cobrou esclarecimentos do governo. Em resposta enviada na quinta-feira (6), o Ministério da Justiça afirmou que não produz dossiê contra opositores e que nunca monitorou adversários com viés investigativo, punitivo ou persecutório penal. Mas, assim como em pronunciamentos anteriores, não negou a existência do levantamento.
Requerimentos de convocação do ministro para esclarecimentos no Congresso Nacional também foram apresentados. Nesta sexta-feira, ele deve se reunir com uma Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI). A reunião ocorrerá na sede do ministério e será reservada.
O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Enrico Rodrigues de Freitas, do Ministério Público Federal deu dez dias para que a pasta se posicionasse sobre o dossiê. O prazo termina amanhã.
Em resposta à pressão recebida no governo, Mendonça, que demitiu o diretor de Inteligência da Seopi (Secretaria de Operações Integradas), coronel do Exército Gilson Libório de Oliveira Mendes, e afirmou que determinou a abertura de apuração interna sobre a elaboração do relatório sigiloso.
“Esta primeira iniciativa, que eu vejo como uma espécie de testagem, o governo caminha aos trancos e barrancos com as suas contradições, avança claudicante, vendo até onde pode prosseguir, até onde pode avançar, quais os limites que a resistência democrática consegue impor. Nesse caso, me parece que nós conseguimos razoavelmente nesse momento reverter a situação colocando o governo na defensiva em função do clamor social e institucional que proveio de todas as áreas”, afirma Soares, que salienta que a atenção deve ser mantida, visto que Bolsonaro acaba de criar o Centro Nacional de Inteligência com “funções nebulosas”.
Procurados pelo Brasil de Fato, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública não retornou até o fechamento da reportagem.
Fonte: Brasil de Fato